Eu queria dizer uma coisa que não posso sair dizendo
por aí.... É que eu tenho medo que as pessoas desequilibrem de si, que elas
caiam delas mesmas quando eu disser.
Eu descobri
que a palavra não sabe o que diz... A palavra delira, a palavra diz qualquer coisa.
A verdade é que a palavra nela mesma, em si própria não diz nada. Quem diz é o
acordo estabelecido entre quem fala e quem ouve. Quando existe acordo existe
comunicação. Quando esse acordo se quebra ninguém diz mais nada, mesmo usando
as mesmas palavras...
A palavra é uma roupa que a gente veste. Uns usam
palavras curtas, outros usam roupas em excesso...Existem os que jogam palavras
fora, pior são os que usam em desalinho, uns usam palavras caras, outros
ostentam palavras rara - tem quem nunca troca, tem quem usa dos outros - . A
maioria não sabe o que veste. Alguns sabem mas fingem que não, e tem quem nunca
usa a roupa certa para a ocasião. Tem os que se ajeitam bem com poucas peças,
outros se enrolam em vocabulário de muitas, tem gente que estraga tudo que
usa...
E você? quais
palavras você veste?? E aí eu fiz uma receita... Se a palavra é uma roupa ...eu
falei: Mas a palavra tá suja demais... a gente usa as mesmas palavras o tempo
inteiro... As palavras estão engorduradas... Então eu falei: - receita pra
lavar palavras sujas:
Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio
dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza,
por exemplo a palavra vida.
Existem outras e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas e desgastadas pelo uso.
O que recomenda esfregar e bater insistentemente na
pedra,
depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que ainda permanecem sujas
depois de submetidas a esses cuidados,
mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram as manchas mais difíceis e
nada.
Todas as tentativas de lavar a piedade foram sempre em
vão.
Mas nunca vi palavra tão suja
como a palavra perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas,
soltam um líquido corrosivo
— que atende
pelo nome de amargura —
capaz de esvaziar o vigor da língua.
Nesse caso o aconselhado é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade.
Agora se o que você quer
é somente aliviar as palavras do uso diário,
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo aqui é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
A culpa, por exemplo, mancha tudo que encontra
e deve ser sempre clareada sozinha.
Uma mistura pouco aconselhada é amizade e desejo.
Já que desejo sendo uma palavra intensa, quase
agressiva,
pode, o que não é inevitável,
esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as
palavras
sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva
produz uma oleosidade que conserva a cor
e a intensidade dos sons.
Muito valioso na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Para isso conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos
que passeie pelas expressões dos seus sentidos.
Á noite, permita que se deite,
não a seu lado, mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme
a palavra plantada em sua carne
prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar a convivência
até não mais perceber a presença dela,
então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.
(Viviane Mosé)
Extraído do livro:
Receita para lavar palavra suja, Arteclara, 2004
Viviane Mosé é Psicóloga e Psicanalista, Doutora em Filosofia pelo
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.